Meta im- ou in im-?

João Manuel de Oliveira; 10/08/2009


fotografia de Susana Paiva


“acts, gestures, desires produce the effect of an internal core or substance, but produce this on the surface of the body, through the play of signifying absences that suggest, but never reveal the organizing principle of identity as a cause.”
Judith Butler, “Gender Trouble”

A persistência das velhas crenças na objectividade, neutralidade e isenção, credo partilhado pela ciência positivista, originou um mal estar nas possibilidades de interpretação marcadas pela presença, parcialidade e participação. A externalidade do olhar é ligada, para Donna Haraway, ao olhar de “deus”, uma mítica qualidade estranhamente partilhada por cientistas e crentes, em que se assume ser possível um ponto de observação num plano distanciado (de cima para baixo, na metáfora), não implicado e em que se assume que o discurso corresponde a uma descrição da “realidade” implícita nesse contexto.
Não creio que um olhar externo possa localizar um objecto. Inversamente, acho que uma política da localização enuncia e contextualiza o modo como o objecto é construído (e não apenas como ele é apresentado). Em im- (um prefixo de negação), desenvolvi, no processo de criação, uma consultoria que habitualmente faço nos trabalhos da EIRA. Este texto visa reflectir essa experiência, num movimento de dentro para fora, assumindo o privilégio epistemológico da perspectiva parcial e situada.
Esta proposta foi construída a partir de um processo de cruzamento entre dois artistas (Vera Mota e Francisco Camacho) e traduz um espanto comum face à possibilidade de não-relação apesar da simultaneidade da presença. Assim, a peça implica-se nas possibilidades da não-inscrição dos acontecimentos nos corpos, de que a primeira cena é exemplar. A marca psicanalítica é evidente na presença oculta de um “isso” (id) que se faz sentir, mas que não se revela nem denuncia a sua face. Apesar desse jogo, em que imagens presentes mas ocultas se contrapõem ao rosto aberto, parece-me haver igualmente uma dificuldade em chegar à linguagem, em separar-se de uma possível mãe (uma particularmente fetal, interior e obstrusiva, que entra no real falogocêntrico). É como se o sujeito não quisesse chegar a essa condição, mantendo-se num plano de recusa de fronteiras entre si e o mundo. Para Kristeva, a má relação com o abjecto ocorre neste processo de separação da mãe, de transformação em sujeito individual com a aquisição da linguagem e simultânea entrada no real. Esse abjecto é visível no momento em que, out of the blue, duas figuras emergem e rompem com a lógica de contenção da performer que se foi deitando, indiferente e deslocalizada às mudanças no cenário que varia entre um deserto e uma paisagem alienígena, que às vezes me faz pensar no Dune de Lynch.
Esse momento particularmente queer, pela exterioridade/visibilidade do abjecto fora de um qualquer armário epistemológico e pela alteridade introduzida na condição de humano, ilude as possibilidades de uma narrativa moderna, interventora e instrumental, que fica assim condicionada à potência de uma não-presença. A recusa de uma identidade fixa – porque não inteligível - é contudo transposta para um momento de tentativa de relação em que os termos em relação são para nós desconhecidos, pois não detemos aquele código, aquela normatividade que regula seres azuis. Assim, não é tanto a não resolução que é proposta enquanto material reflexivo, mas sim as possibilidades de inteligibilidade, fora de padrões de relação que desconhecemos.


fotografia de Susana Paiva


No final, a tentativa de relação que falha constantemente é aludida e desta forma proporciona uma semi-inteligibilidade. Tratam-se de humanos, apesar de já infectados com a condição de alteridade anterior, e assim não completamente constrangidos a uma performatividade sujeita às normas do humano. Tentativas várias de individuação e de relacionalidade são tentadas até ao abandono da desértica paisagem. As sucessivas operações sobre o sistema de género implicam um processo de identificação mas simultaneamente de obliteração dessas normatividades, pois há várias figuras em que o género pode ser adivinhado, mas nunca completamente confirmado, mantendo uma qualidade queer durante todo o tempo da peça. O género pode ser lido na sua acepção butleriana, em que é conceptualizado como performativo, lido e interpretado no quadro de uma inteligibilidade normativa, reguladora do significado dos actos e gestos. Trata-se de um género que é feito e não tem relação directa com a identidade (o que aliás é evidente noutros trabalhos de Camacho como “Nossa Senhora das Flores”).
Esta peça, na leitura que fui fazendo dela, fala pouco de identidades, preferindo a exploração dos terrenos mais ambíguos da des-identificação e das possibilidades de re-leitura da condição (pós) humana, fora das normas de estruturação das identidades. Ao mesmo tempo, essa des-identificação é-nos devolvida, fazendo-nos repensar as nossas próprias performances e as nossas identificações que são estratégicas, parciais e reguladas pela própria sujeição às normas que nos transforma em sujeitos.
Neste processo criativo, fui convocado como testemunha crítica, e de uma forma dialógica e através dessa interpelação, construí esta possibilidade de leitura. Não sendo uma leitura “oficial” ou definitiva nem uma meta-narrativa que obstrua outras possibilidades de construção de significados sobre a peça, traz contudo essa marca dialógica de contacto e das possibilidades de devir com os outros, não entendidos como outros generalizados, mas próximos e figurados. O trabalho de investigação permite essa aproximação interpretativa e nesta perspectiva, a distância metodológica perde o carácter situado e contextualizador que os conhecimentos podem e devem ter. Tratam-se de compreensões parciais, não de metaleituras. In im- e não sobre im-.


João Manuel de Oliveira
Investigador em teoria feminista e estudos de género/queer
EIRA e CIS/ISCTE



Apuntamentos sobre "im-"

Pablo Caruana Húder; 9/08/2009

fotografia de Susana Paiva


Primera pieza que veo de Camacho en vivo en este fin de semana portugués (la otra compañía programada es Colectivo 84, dirigida por John Romão). Difícil hablar sobre una persona con tanto atrás y que además en este caso ha hecho dupla con Vera Mota, artista plástica y performer que se mete en escena con todas las consecuencias y toda la actitud. Por eso, con sigilo, me permito unas breves notas desde el desconocimiento y los ojos abiertos.

Notas:
Presencia y técnica, actitud y… un cuerpo trabajado. Vera Mota y Francisco Camacho. En escena. Ese contraste está ahí, operando en todo momento. Y es curioso que Vera sea vertical y ligera, perdida en sofistificación de feminidad ausente; y Camacho, por el contrario, sea temblor indeciso, espasmódico, horizontal, enfermo de duda en un espacio que lo asusta.

Los desiertos de Dune, el peligro que acecha desde el subsuelo. Sin el mundo de la aventura de Frank Herbert pero con la extrañeza, el tiempo entre la pesadilla y la realidad, del Lynch de Lost Highway. Perdón por las citas cinematográficas, no es cosa buena, a mí me suelen disgustar. Pero en este caso es una buena manera de explicar el tiempo y el universo de la primera parte de “im-“.
La pieza está dividida en tres escenas, la segunda de ellas interpretada por David Marques y Patrícia Milheiro. Una escena que si bien tiene en un principio hilos de contacto con las otras dos escenas donde operan Vera Mota y Francisco Camacho, está concebida con un lenguaje disímil, diferente al resto de la pieza. Sigue estando el mundo irreal, lunar, donde opera la imposibilidad del encuentro entre los seres, hay una continuidad estética, incluso cromática, pero en esta escena de seres azules, robóticos, el lenguaje se vuelve irónico y explicito. Si bien toda la pieza es milimétrica, esta escena parece compuesta, empieza y acaba, mientras que en las otras dos parece interesar más el rastro, el pasar eterno de los cuerpos aun cuando estos ya se han ido, la permanencia.

fotografia de Susana Paiva


Tercera escena: La imposibilidad de hacer, de parecer, la voluntad de la dejadez, del dejar pasar, fruto y pan de los que están y se saben solos. Las diagonales en el espacio de danza como si fueran líneas de vida… Cómo transcurrirlas. Desde la simulación etérea y vertical o desde el espasmo ridículo del que ya conoce que accionar es inservible…
Y el infierno de la movilidad, de la imposibilidad de estar siempre quieto, de no poder no moverse, de al final estar abocados a moverse, a continuar. Todo esto brota sin ser dicho, sin explicitarlo, con una narrativa no exenta de humor, de un humor tampoco dicho, con un tiempo lento donde poder mirar e ir uniendo. Se trabaja con la sutilidad en un espacio nítido. Se elige la parquedad de elementos. Una peluca, una tonalidad en el vestir, un espacio limpio, un fondo vacío. Dónde está el corazón, el ser humano, en esta pieza sin rostro.
Acaba la obra con música sesentera (Where Have All The Flowers Gone, cantada por Joan Baez) y setentera (Like A Hurricane, de Neil Young). Época en teoría vital y de cambios. Bajo esa sonoridad se contraponen el cuerpo vertical e ingrávido de Mota y el cuerpo enfermo y espasmódico de Camacho. El contraste funciona y nos da distancia para ver estos cuerpos de hoy, para vernos. La actitud se vacía de sentido, la verticalidad parece vértigo, miedo sostenido. El espasmo se convierte en gesto omnipresente.


"im-" ou O corpo coisificado

Claudia Galhós; Agosto 2009

O que dizer da possibilidade de um corpo hoje? Qual o sentido da sua representação/presença em cena? Ou nenhuma destas qualidades é justa nesse identificar do inscrever de um corpo em palco? O que fica do sentido possível das imagens, que ecoam no ar, veiculadas por canais de mediatização e de imediatização consumista do viver? Estamos todos domesticados. Rendidos à escravidão do vazio. Subjugados pela mediocridade a que o olhar, esvaziado de pensamento, pairante no eco das aparências e das superficies sem fundo, vagueia.
É disto que fala Bragança de Miranda no livro «Corpo e imagem».

«Nos nossos dias a imagem atingiu a sua coisidade absoluta, e são controladas como gifs, tiffs, bmps, etc. E, em contrapartida, as coisas ficaram elas próprias enfraquecidas. Como diz Francis Ponge: 'Que espantoso servilismo! As coisas andam insípidas como imagens. Literalmente, como imagens!' Infelizmente as imagens estão a tornar-se tão dóceis como as 'coisas'. Com o que perdem umas e outras.»i

Como se pode então, por via da arte, resgatar a dimensão humana a essa coisa a que tem estado reduzido o corpo. O corpo coisificado. Precisamente em consequência de um efeito da exaustão e da profusão do corpo-imagem.
Superámos a rejeição da representação. Superámos a reclamação de uma presença em cena, ali de carne e a esvair-se em sangue, pulsante, visceral, sexual - como o fez Yvonne Rainer na década de 60, no manifesto da peça «The Mind is a Muscle». Procuremos encontrar uma nova possibilidade para que o corpo habite, reconciliado, o espaço cénico, como espaço crítico do real. Recuperemos esse corpo, como possibilidade de construtor de sentidos, que está para além da superação dessa representação e dessa presença.

“Im-“, a cena:

O ambiente desenha uma paisagem, que instala, em tons claros, a monocromia de brancos e pastel, a tocar o levemente amarelado, como um sol ligeiro de fim de dia. A silhueta feminina está claramente visível à boca de cena, do lado direito. No chão, apenas dois pequenos altos e um monte maior no canto oposto, ao fundo.
Ela calça botas, tem o cabelo preto comprido, está de pé. O olhar vagueia, lento, em redor do espaço. Ausente.
O tempo arrasta-se. Trava.
O olhar repousa perdido na quase invisível deslocação no espaço.
Aparentemente
tudo permanece,
em delicada transição.
O tempo é espaço que procura uma forma de fixar a imagem. Talvez fixando, no real encenado, a imagem como possibilidade de movimento do corpo, no contexto de uma paisagem também aparentemente estável, intacta, essa imagem possa habitar a memória. Talvez possa ser resgatada dessa vertigem redutora da fragmentação e multiplicação das imagens e das coisas. Mas o corpo-imagem que se quer reabilitar enquanto corpo e menos enquanto coisa, é uma noção que acaba por poder ser estendida a todo o envolvente.
É corpo também aquele lugar.
Corpo que inscreve texto e sentido e possibilidades de criação de sentidos. Ou pelo menos que se propõe instalar uma interrogação, interromper o fluxo repetitivo dessas convenções, e da espuma dos dias banais.
O corpo é forma e é movimento.
Forma, instável, em movimento.
O corpo é horizonte do céu. Azul. É possibilidade de desenhar outras formas. O segundo corpo está escondido. Por baixo do solo, desaparece. É corpo que se supõe, mas está ausente. Ausente do olhar. Desloca-se no espaço. Mas já não é ele. É um corpo outro. Corpo-forma instável. Enigma. Geométrico. Temperamental. Sem rosto, olhar, nem intenção identificável. É contínuo da matéria e do pensamento. Trânsito. O feminino, em destaque, desvelado, demasiado próximo para construir a aparência de tudo deixar ver, à superfície, resguarda, no seu oposto, o corpo que mergulha e desaparece, que toca uma outra camada do sentir. Não é lá atrás. É lá em baixo. A criar transformação na estabilidade do chão, a criar dinâmicas nessa pele que divide os dois patamares. Ele é chão, subsolo, inconsciente, invisível, camada subterrânea da pele. Ela é superfície, aparência, e ausência à vista do olhar.
Depois tudo é azul.
A leveza pairante das cores e dos movimentos dá lugar a uma dupla de criaturas invulgares, de formas estranhas, ainda assim de reconhecida silhueta horizontal, apesar dos volumes redondos espalhados pelo corpo e encimados no alto do que seria a cabeça por mais um círculo. Apesar da estranheza, joga-se o plano da iconografia. É para ali que se inclina a percepção do olhar. Aquelas figuras sugerem o impacto intemporal dos icones, onde se enraiza toda a narrativa do simbólico e do poder original da imagem.
O azul é o horizonte de cor que liga à cena seguinte. Movimentos aparentemente descoordenados, de dois corpos em cima de um pedestal que procuram uma forma de se relacionar, de se tocar, de se encontrar num equilíbrio, que se revela sempre precário, na dificuldade dessa figura oscilante.
O azul é cor do céu. Cor do horizonte possível dos sonhos e da imaginação. Se o céu continuasse a ser esse espaço amplo e aberto. Voltamos a Bragança de Miranda, e essa questão das imagens que, no início, «são as próprias coisas a que se colam imperceptivelmente, mas que alteram»ii. Sendo a poesia «essa máquina de alterar, que cria outros espaços e extensões, impossíveis mas necessários».

Temos então o azul. O Céu.

«Tudo recai na mudez da fisicalidade, coisas e 'imagens'. Eis o motivo para que seja possível separar coisas e imagens. A crise que inquieta Müller é repetida. De facto, esvaziado o 'céu', já sem deuses, fica sozinho, sem nenhuma 'imagem que o fixe', as próprias nuvens vistas de um avião são um obstáculo, 'um vapor que nos tira a vista'. A ascensão torna-se técnica, o olhar do céu é impedido pelas nuvens, nas quais já se pôde caminhar um dia.»iii

fotografia de Susana Paiva

Voltamos então ao plano do solo. Agora sobre o solo. O corpo reconhecível novamente. Mas o azul, no caso do intérprete masculino (Francisco Camacho), ainda lhe cobre a cabeça, nos cabelos, que lhe escondem também o rosto. Se tomarmos o azul como essa promessa de imagem originária de um céu que era sentido de possibilidade de perduração de imagem na memória, mesmo quando já ausente. Mas o que temos é o confronto com essa eterna erosão da multiplicidade.
Os dois corpos, que se encontram num plano mais terrestre e mais próximo do reconhecível, tocam o desejo tentador de se tornarem sedutores. Estão envoltos pelo ambiente sonoro de músicas pop, na qual ressoa esse eco de uma paisagem de um passado perdido - «where did all the flowers go...» Mas também aqui há resistência. Resistem a deixar-se dominar por esse compasso, que é apenas sinal de evidência desta mesma erosão do sentido do corpo, para que possa resgatar o corpo coisificado, o corpo-imagem. Ele estremece, convulsiona, perturba-se, aproxima-se do chão. Ela hesita, cede ligeiramente à música, retrai-se, contém-se, descai levemente.

Análise final:
Talvez não se encontre aqui a resposta para as várias questões que a peça coloca. Mas o enunciar e o identificá-las é o primeiro gesto no sentido de uma afirmação de pensamento e de posicionamento crítico e não conformado com a realidade. É aí que a arte pode surgir. E com ela a transformação. É aí que esse corpo pode ter lugar para se resgatar.
Falamos então de que corpo? O corpo que «dá lugar à existência», no dizer de Jean-Luc Nancy?iv Corpos que, no gesto de tocar o sentido, devem alcançar o estatuto justo, de estarem na condição que supera a coisificação e supere o serem reféns dessa escravidão do corpo-imagem. É sempre trânsito. Movimento instável, no contínuo entre a matéria e o pensamento.

«Os corpos não têm lugar, nem dentro do discurso, nem dentro da matéria. Eles não habitam nem o 'o espírito', nem o 'o corpo'. Eles têm lugar no limite, enquanto limite: limite – bordo externo, fractura e intersecção do estranho no contínuo do sentido, dentro do continuo da matéria. Abertura, discrição.»v

Claudia Galhós

i J.A.Bragança de Miranda, «Corpo e imagem», Nova Vega, Lisboa, 2008, pag. 36
ii op.cit., pag.38
iii op.cit., pág. 38
iv Jean-Luc Nancy, «Corpus», Métailié, Paris, 2006, pag. 16
v op.cit., pag. 18


entrevista: Francisco Camacho e Vera Mota I

por Cláudia Galhós; Abril 2009

PRESENÇA DESCLASSIFICADA

fotografia de Susana Paiva

Em Abril passado, Francisco Camacho e Vera Mota faziam um ensaio corrido da primeira peça que criavam juntos, no estúdio da Eira, em Lisboa. «im-» estreava nesse mês, no festival da Fábrica no Porto. A conversa que aconteceu então discutia ideias ainda em desenvolvimento, que à vista da nova fase da peça, inaugurada esta semana no festival Citemor, revela o desenvolvimento e a ultrapassagem de algumas das questões suscitadas nesse ensaio. A antecipar a nova entrevista, que actualizará o olhar sobre a obra e o trabalho dos dois criadores, fica o documento de memória dessa primeira conversa.


Que afinidades levou a que tenham querido trabalhar juntos?

Vera: Foi amor à primeira vista (risos). Eu já conhecia o Francisco há muito tempo, como espectadora do trabalho dele, mas às tantas fiz o curso do Forum Dança no Porto, onde ele era um dos professores e foi lá que o conheci.

Francisco: Estivemos umas cinco semanas em contacto, que foi o tempo do curso. Nesse período a Vera desenvolveu vários trabalhos, incluindo uma performance. Ela continuou a trabalhar nessa peça, eu ainda a acompanhei um bocado, e de alguma maneira esse trabalho acabou por nos ligar.

Mas o que é que vos interessou no trabalho um do outro?

Vera: Lembro-me que quando comecei a ver espectáculos, o Francisco era uma das minhas referências. Depois, a forma como chegámos até isto foi o facto de acharmos que tínhamos algumas afinidades em termos de ideias...

Francisco: Nomeadamente, e foi uma das coisas que trabalhámos no curso, foi a questão da presença. Que ecoa aqui. Eu estava na fase do meu trabalho de criação do «Live/Evil», a que se seguiu o «Coup d'Etat». Interessava-me pesquisar um outro tipo de olhar sobre o corpo, o trabalho do corpo é muito assente nessa presença, como se sustenta a cena a partir da presença. No caso da Vera talvez o facto de haver uma forte consciência desse aspecto da presença, até pelo seu trabalho de artista plástica e também por trabalhar com fotografia e outros media, isso é muito relevante. E foi uma das coisas que me interessaram. Claro que depois entrámos numa questão pessoal, que é a afinidade com um certo tipo de presença, de estar, de olhar.

Vera: O meu trabalho também tem muito essa componente performativa, mesmo quando faço vídeo utilizo muito o meu corpo e muito a noção do corpo presente, mesmo que ele não apareça. Para mim faz todo o sentido fazer essa investigação que se estende até ao movimento e até à performance.

Desde o trabalho do «Live/Evil» que noto que as tuas peças, Francisco, são muito sustentadas pelo chão, não de o corpo se atirar para o chão, mas de tudo o que decorre e se coloca no chão. É um movimento no chão ou no subsolo, que é dado pela utilização de um certo tipo de materiais que aparecem muito, tecidos... Identificas esta ligação?

Francisco: É intencional no sentido de eu sentir que podia ir mais longe nisso. Mas é uma confluência de interesses. Porque houve uma altura em que retomámos o trabalho, porque tivemos vários períodos de encontros e informações anteriores ficaram pelo caminho e surgiram novas. E nas novas surgiu uma preocupação da Vera, com questões que ela andou a aprofundar no trabalho e relacionadas com a pesquisa académica dela.

Vera: O primeiro encontro foi para aí há 3 anos. Entretanto fizemos um grande intervalo porque o Franscisco estava com o «Blessed», da Meg Stuart, eu estava com o meu mestrado. Durante esse período, desenvolvi a tese de mestrado cujo tema andava novamente à volta do corpo.


fotografia de Susana Paiva


Em que sentido?

Vera: De algum modo como contornar a evidência constante e o confronto constante com imagens do corpo. Então, quando nos encontrámos havia uma série de ideias que tinham ficado para trás, e eu vinha com muitas ideias muito frescas, que era essa questão de como diminuir essa evidência, essa presença quase gratuita do corpo. E na altura vinha com conceitos como informe, como a ideia de mimetismo, de imobilidade, discutindo e acertando ideias com o Francisco. Aquilo que eu vim propor vem de encontro ao que disseste, essa ideia do informe remetia-nos muito para esta ideia de horizontalidade, o próprio material do cenário, que é uma cor neutra, algo que fica entre qualquer coisa... O trabalho foi muito em torno de como reduzir essa presença do corpo. Como por defeito chegar a uma presença mais intensa. Ou como esvaziar de tal forma que só restasse essa carcaça, de não estar a fazer nada. Pensámos sempre muito nessa ideia de desclassificar a presença.

E o que significa isso de desclassificar a presença?

Vera: Obviamente que nesse processo de desclassificar uma coisa há muitas outras questões que vão surgir. Esta noção de desclassificar tem a ver com este conceito de informe e que passa por reduzir uma coisa ao seu estado. Bataille, que sempre falou deste conceito, referia-se à palavra informe como uma coisa que é informe não apenas no seu aspecto, na sua aparência, mas como algo que em determinadas circunstâncias sofre uma transformação em que adquire uma qualidade que não é a sua. Neste caso, quer pela ideia de imobilidade, quer pela de horizontalidade, que é uma condição não associada à ideia de construção, de ideia de ser sublimado que é o homem, que atinge uma horizontalidade por oposição aos seus menores, os animais. Todas estas operações deveriam ser formas de desclassificar esta presença. Claro que não há aqui originalidade nenhuma em aparecer um corpo parado. As pessoas trabalham há muitos anos com a imobilidade em cena. Mas novamente quisemos usar essa ideia de não fazer nada. E depois também usamos a personagem do Bartleby, do Melville.

Que surge relacionado com essa ideia de possibilidade de não fazer nada?

Vera: Tem a ver com essa possibilidade de ocupar o tempo sem fazer nada. Daí também estar nesta cena sem fazer nada. E também consideramos o Bartleby por ser uma personagem que se vai desclassificando ao longo da sua história.

Eu vi uma eminência constante da queda, do corpo em queda, em desequilíbrio, que é uma imagem que conheço da dança contemporânea, mas que surge aqui como iminência mas não concretização. E com uma noção temporal totalmente distinta. É a presença da ameaça constante da possibilidade da catástrofe. Que se pressente a partir de uma perturbação interior, que permanece em contenção.

Francisco: Para mim está lá. Mas não foi decidida em comum, essa iminência da catástrofe.

Vera: Estamos numa situação-limite, desde a introdução. Não há indícios de construções, de algo que remeta para uma civilização ou um enquadramento mais seguro, construído.

Eu vi o espaço inicial como um deserto...

Francisco: Houve quem tenha visto um espaço lunar. Mas o que queremos é deixar em aberto. E a aposta na opção duracional da cena é permitir que possam existir essas projecções e sejam suscitadas ideias e possibilidades de leituras, como o meu corpo lá de baixo também está em metamorfose mais evidente que o dela.

É uma oposição, entre essa forma escondida debaixo do solo, que não identificamos o que seja e se vai ampliando, e o corpo humano, visível, que se vai recolhendo e reduzindo. Mas há um oposto também entre esse momento e a fantasia das figuras azuis, que parecem marionetas, por causa da qualidade do movimento.

Vera: Há uma ideia que atravessa todo o espectáculo que é o facto de estarmos sempre os dois presentes e nunca haver um diálogo. Este momento, para além de criarmos figuras que pela sua estranheza se distinguem ou teriam sido desclassificadas ou tornadas outra coisa que não aquilo que ele e eu somos, mesmo dentro de cena, havia essa ideia de estando tão próximos continuarmos com um contacto de distância.

Francisco: Em que não nos encontramos. Em que não é fusão e o embate do toque é ocupar o espaço um do outro, sem conseguir partilhar o espaço.

Vera: Uma dependência mas uma repulsa, de realmente não haver comunicação nenhuma, de ser mais um elemento com o qual tenho de lidar, tenho de gerir, mas que continuo a não conhecer ou a não estabelecer comunicação.

Francisco: Quanto ao lado marionético do movimento...

Vera: Também há aquela questão...

Francisco: Qual? (risos)

Vera: A questão técnica.

Francisco: A questão técnica...?

Vera: De adaptação ao espaço, e ainda faltar definir...

Francisco: Mas já estava lá. Quando estamos envolvidos numa acção, e isso era mais evidente antes de termos o espaço, em que o olhar está completamente desligado dessa acção.

fotografia de Susana Paiva


O olhar é um elemento fundamental deste trabalho. É fortemente marcante na primeira parte e torna-se marcante pela sua ausência na segunda.

Francisco: Tinha medo que não resistisse porque isso foi um factor importante para a sua construção. E a primeira vez que vestimos os fatos perdemos aquilo, mas depois fomos pelo lado do movimento e funciona.

Nesta organização em três partes, há um sentido de solidão que se acentua na terceira...

Francisco: Estávamos muito com a ideia de trabalhar a impossibilidade, e há uma consciência e uma insatisfação com aquilo e uma ideia de começar de novo. E aí ligamos ao Bartleby, quando tomas uma decisão estás a anular uma série de outras possibilidades. E então aquele fim é quase como um recomeço, que é esse recorrente voltar ao zero.

Vera: Para mim, faz parte de um sentido de desenvolvimento da peça. Há uma primeira parte que parece de aceitação de que não há nada. Depois dessa contenção, e mesmo depois de algum excesso que aparece dessa segunda parte, permanece uma atmosfera fria. Não há nada que expresse os sentimentos. E para mim, essa última parte, ainda dentro desse a-sentimento, há um bocado um recuperar algum sentimento, alguma emoção, desses rasgos, que são muito rapidamente abandonados. E mesmo a escolha das músicas – que nesta altura ainda não eram definitivas – também têm a ver com isso, com um imaginário colectivo, que nos remete para memórias e são músicas carregadas de emoção. E depois a nossa presença na parte constrastante permite deixar-se afectar, reagir em concordância um com o outro.

Mas permanece uma impressão de solidão imensa.

Vera: O encontro continua impossível.

Claudia Galhós

entrevista: Francisco Camacho e Vera Mota II

por Cláudia Galhós; Agosto 2009

fotografia de Susana Paiva

O que existe no intervalo, entre uma presença aparente e uma ausência aparente? Esta é apenas uma das questões que a peça im- de Francisco Camacho e Vera Mota coloca.

O percurso do Francisco Camacho é já longo, e temos vindo a tratar dele nas últimas edições do Citemor. Mas nesta peça assina a criação conjuntamente contigo, Vera [Mota], que estás a começar. Qual foi o teu percurso até chegares à dança?

Vera: O meu interesse pela dança surgiu quase em simultâneo com a formação em artes plásticas. Quando entrei para a faculdade, comecei a fazer aulas de dança contemporânea. A ideia na altura era ter mais uma ferramenta para usar no meu trabalho nas artes visuais. Sempre me interessei pelo corpo, pela forma, pelo conceito, por tudo. A pesquisa era simultânea, desde os materiais plásticos e do corpo na dança, comecei a cruzar de maneira muito natural as duas linguagens E no segundo ano do curso, em 2002, fiz a minha primeira performance, em que pesquisava sobre a questão da matéria inerte e do corpo. Até que ponto as coisas se misturavam, até que ponto o corpo dependia do espaço e dos objectos? Abordei as teorias do Merleau-Ponty. Começou por aí, sempre numa pesquisa do que seria esse corpo, até onde iam os seus limites formais e conceptuais. A minha tese de mestrado foi uma continuação dessa pesquisa.

Qual é o tema da tua tese de mestrado?

Vera: O título é: «Por um corpo menos evidente – imobilidade, mimetismo e informe». A minha intenção foi tentar perceber de que maneira se poderia evitar a evidência ou a literalidade do corpo. O uso excessivo da imagem do corpo, que está cada vez mais explorada e banalizada, que quase não tem efeito. A minha investigação era perceber de que maneira esse corpo podia desaparecer e até que ponto. Até que ponto poderíamos reduzir a participação do corpo a algo de essencial, sem o tornar literal, sem o planificar, sem abusar de alguma maneira da sua imagem. Eu propunha essas três hipóteses como formas de escapar a essa evidência.

O que significa cada uma delas: a imobilidade, o mimetismo e o informe?

Vera: O mimetismo fui buscar a textos do Roger Caillois, um francês dos anos 30 que estudava o mimetismo nos insectos. Ele abordava essa reacção nos insectos não como forma de defesa, mais como contágio. Uma absorção do espaço por esses insectos. O que entendia e relacionava com o meu trabalho era isso: o corpo, de alguma maneira, ao fundir-se ou absorver características do espaço poderia, de algum modo, desaparecer. A imobilidade também contribui para esse desaparecimento do corpo, porque na medida em que eu tento adquirir uma qualidade que é dos objectos e, portanto, do inerte, ele nega a sua organicidade, o seu movimento que lhe é natural, embora haja sempre movimento de vibração, pulsação, respiração. Isso nunca desaparece. Aí junto ao mimetismo a imobilidade e tento reduzir ao máximo essa presença, essa evidência do corpo.

E o que significa, no contexto dessa pesquisa, o informe?

Vera: Usei muito referências da fotografia surrealista, Man Ray, entre outros, que pesquisavam essa ideia de informe. Faziam fotografias em que o corpo, a forma reconhecível do corpo, desaparecia. Depois, juntamente com essa parte teórica, há a questão do olhar e toda a negação do olhar, que é negação do sujeito. Ao mesmo tempo há quase que uma vertigem, porque não havendo o olhar, imagina-se uma infinidade de olhares possíveis. Além disso, a imagem ampliada cria quase, como referência, a ideia de alienígena. E essas eram as minhas hipóteses para encontrar esse corpo menos evidente.

Todas estas ideias trouxe-as, de algum modo, para esta peça. Quando nos encontrámos novamente para trabalhar, falei de tudo isto ao Francisco. Está aqui presente muito esta questão da imobilidade, a fusão com o espaço, o Francisco está mesmo lá em baixo, principalmente na primeira parte isso é particularmente visivel. A questão do informe aparece de um modo mais natural, não tanto aquilo que eu tinha explorado, mas aparece na segunda parte. Assim como toda a oposição entre o horizontal e o vertical, que tem muito que ver com o informe. Mesmo o momento inicial da voz tem que ver com essa quase redução do corpo a uma função, neste caso emitir um som, que parece não dizer nada realmente, porque parece menos importante, é mesmo apenas uma pesquisa de uma função...

Partilham, através desta peça e de modo diferente, o interesse de pesquisa sobre o corpo. A procura de um corpo que supere a imagem estereotipada. Porquê este interesse do corpo? O que pode ser esse corpo essencial?

Vera: Acho que o interesse pelo corpo tem que ver com um certo narcisismo. A coisa mais próxima de nós é o nosso corpo. No seu âmago, penso que esse interesse vem daí. Toda a História revela esse interesse. Na Renascença, a pintura foi influenciada pelas descobertas científicas, pelaa dissecação dos corpos... Portanto, este interesse é algo que acaba por abarcar uma amplitude de interesses muito diversos, e passa pela cabeça de toda a gente. Depois o que é particular é a forma como quis que isso aparecesse no meu trabalho. Neste momento, já que o corpo é tão usado, de tantas maneiras, está de tal modo gasto, interessava-me perceber de que forma é que esse corpo podia continuar a ser abordado e de que maneira era possível continuar a falar do corpo. Há artistas que tratam do cyborg, como o Stelarc, que assume o corpo como obsoleto e avança com a tecnologia. Mas de que maneira ainda é possível conservar o corpo como ele é? De que maneira se pode voltar atrás e recuperar um corpo menos plano, recuperar um corpo com mais informação, mais denso. Agora, olha-se para o corpo e quase que ele desaparece.

Francisco, tendo em conta um longo percurso de questionamento do corpo no teu trabalho, ainda, e de que modo, faz sentido continuar a questionar o corpo hoje?

Francisco: Desde do "Live/Evil" (2005), mas mais acentuadamente com o "Coup d'État" e depois agora com o "im-", estou numa fase de investigação diferente. Até aqui, surgia muito junto com a questão dos constrangimentos sociais, religiosos... Como é que o corpo lidava com esses constrangimentos e como é que procurava uma maior plenitude, no sentido do que poderia ser uma essência de uma liberdade para o corpo, se ela existia ou não. Agora, estou num plano muito mais desligado desses contextos sociais e religiosos e estou num ponto em que me interessa o corpo quase como uma abstracção. É um corpo que já não é necessariamente um protagonista ou um portador de uma narrativa. É um corpo, que é uma forma, e que está em ligação com o espaço. Não deixa de estar ancorado numa ficção, porque este corpos aqui propostos são corpos ficcionados.

Interessa-me essa ideia da identidade enquanto ficção, e aqui ligam-se também as questões do corpo humano, do limite do humano e do pós-humano. Mas aí não me interessa ir para as imagens tecnológicas, enquanto corpo. Interessa-me procurar ,com meios muito simples e quase minimais, o que esse corpo pode transportar dessas ideias e dessa reflexão sobre o que são os limites do humano e o que é o pós-humano. É questionar o plano em que está o nosso corpo hoje, no século XXI, mas através desses meios muito simples, minimalistas e sem recursos a grande aparato tercnológico. Isto remete para a primeira parte. Passado algum tempo de iniciado o processo criativo, decidi ir para baixo do pano, como tinha feito no "Coup d'État", mas levar isso mais longe neste projecto, ser constituinte de toda uma cena e explorar mais. Depois há a questão da minha prática diária e tentar ir mais longe com os materiais, e descobrir configurações diferentes para o corpo. Apeteceu-me não começar logo com uma coisa orgânica como era o "Coup d'État", em que havia aquele movimento nas toalhas no chão. Aqui apeteceu-me explorar a imagem quase como uma esfera, que se desloca muito lentamente, e pouco a pouco vai insinuando uma humanidade mas que não chega a instalar-se. Isso na primeira cena. Na segunda, para mim é completamente 'queer', aquelas figuras, tanto que uma das fontes de inspiração foi o Leigh Bowery, e ali estamos num plano em que não há uma identidade fixa. Aquelas figuras não se podem inscrever claramente numa tipologia de personagem ou de identidade. São mutantes, são seres, podemos tentar atribuir um sexo ou não. Cabe a cada um de nós confrontarmo-nos com o que pode ser aquela identidade.

Na terceira parte houve uma alteração. Esta terceira parte já conheceu duas versões públicas. Para além das internas. Relativamente à diferença da primeira para esta no Citemor, achei que a minha figura era demasiado humana inicialmente. Não me fazia sentido, depois de toda a estratégia da primeira e da segunda parte, ela aparecer tão claramente com uma cara. E mesmo o tipo de movimento que explorava, que era o meu corpo a tentar encontrar uma dança, já não me interessava. Podia ser mas não era o mais coerente com a primeira e a segunda partes. Apeteceu-me voltar a uma ideia de corpo que está à procura de uma forma e não de uma dança. Está a tentar inserir-se naquele espaço e reforçar as questoes de horizontalidade e verticalidade que explorávamos. Ele quase pode regressar por baixo do pano e manter-se nesta tensão entre estar numa vertical ou regressar a uma horizontalidade e diluir-se mais uma vez naquele cenário. Disseminar mais uma vez aquela identidade. Ir desaparecendo...

O que é isso de identidade como ficção?

Francisco: Não acredito num essencialismo em relação a uma identidade. Não acredito que haja uma identidade estanque. Não acredito que sejamos algo de fixo e tenhamos que descobrir o que é. Não acredito naquelas tendências New Age, de descobrir o verdadeiro 'eu'. Acho que isso é uma treta. Acho que temos de aprender a lidar com todas as variantes de tudo o que somos, e em cada momento vamo-nos constituindo em diferentes 'eus'.

Mas isso significa que já não continuas a defender uma ética artística, no sentido de uma postura envolvida com o real, de crítica do real?

Vera: Como não há uma narrativa explícita, o espectáculo mantém-se aberto a todas as possibilidades. A ideia de não estar a produzir nada parece uma perda de tempo, tendo em conta a sociedade em que vivemos...

Francisco: Profissionalmente para mim isso é uma questão. Tenho uma forte resistência a objectos que me são propostos enquanto espectáculos, em que a estratégia é dar uma pista, eu adivinho, e depois o autor através do seu objecto-espectáculo confirma-me que eu acertei.

Odeio esses espectáculos e acho que representam um gigante retrocesso social artisticamente. Eu continuo militante de espectáculos e gosto, enquanto fazedor, de propor aqueles em que espectador tem de fazer o seu trabalho. Ele não tem de estar aqui confortável, o seu lugar é-lhe confirmado e ele sai daqui pacificado. Quero que o espectador faça uma escolha: ou decide fazer este movimento em direcção ao que se passa em cena, vai lá e está lá e depois decide o que quer criar e chega às construções dele; ou então fica aqui e decide não entrar. Também é aceitável. Mas lançar tudo do palco para a plateia, e ter uma plateia meramente receptiva, passiva, isso não. Eu quero que também haja um movimento do público, claro que não é em termos literais. Isto porque sinto que há cada vez mais objectos que têm em si a chave e dão a chave ao espectador. São muito bons para pacificar e apaziguar as inquietações. Se calhar por isso estou interessado em aprofundar no sentido da abstracção e da subjectividade. Para acentuar ainda mais. É necessário as pessoas irem lá. Como no cinema. Acho que precisamos, mesmo no cinema mais mainstream, de um David Lynch. Precisamos de pessoas que se dão ao trabalho de ler as coisas, fazer um esforço interpretativo. Participarem, trabalharem. E não ser-lhes tudo dado, com finais felizes e chaves na mão.

Como foi o proceso de trabalho? Em termos dos movimentos que experimentaram, da relação com o espaço, da quase ausência de objectos, e que livros leram...

Vera: Começámos com algumas coisas que eu levei, que estavam relacionadas com a minha pesquisa. Autores como Bataille, o Roger Caillois, o "Bartleby" do Melville. Depois, a propósito deste também lemos uma análise do Deleuze e do Agamben sobre o Bartleby. Essas foram essencialmente as nossas refências comuns.

Francisco: A Vera trouxe este universo de referências que vinha do trabalho dela e do que ela tinha desenvolvido na tese e na faculdade e partimos daí no início. Depois, eu fui buscar o Agamben a propósito do Bartleby. Mas na minha cabeça, e que muitas vezes fica só na minha cabeça, tenho os meus outros universos de referência. Apesar de achar interessantes os que ela propôs como pontos de partida para o trabalho, eu depois preciso sempre de criar os meus mundos paralelos nestas coisas. Mesmo quando trabalho com dramaturgistas e com colaborações, quase que preciso de um espaço de retirada meu para me organizar. Acabei de ler mesmo agora, e cuja leitura coincidiu com o princípio e o fim do processo, "O homem sem qualidades" do Musil, o primeiro volume. Trouxe o livro e lemos algumas partes no ensaio. Em simultâneo sou fascinado pela psicanálise... Na minha cabeça e nos meus modos de partir para o movimento, são coisas que me vão informando sempre. Mais pela via Lacaniana, pela via do Zizec...

Vera: Que são referências que depois também coincidem com o meu universo.

Mas, o quê concretamente, experimentaram em termos de pesquisa de movimento?

Francisco: Não posso dizer coisas concretas. Há quase uma forma de pensar, e uma forma de me colocar, de tentar encontrar um outro corpo, mas não é uma coisa em que pegue numa frase e “vou tentar encontrar isto”. São sensações. É quase uma coisa impressiva. Não estou a tentar fazer uma tradução da psicanálise para movimento. Por exemplo, no "Blessed" havia um livro da Clarice Lispector , mas que me foi importante aqui, "A Maçã no Escuro", que fala de um homem numa paisagem quase desértica, um homem perdido sem identidade, que não se lembra da sua história, não sabe porque está ali. É um pouco neste sentido, tentar ir buscar sensações para encontrar um outro corpo. É uma coisa muito impressiva e muito intuitiva, não é a tentativa de uma tradução directa. Mas eu sinto-me um bocado como uma instância inconsciente, em relação à Vera. Vejo-nos como um binómio, com dois lados, em que entram inconscientes, super-egos, subterrâneo e aparente. E depois há uma coisa mais óbvia que é aquele azul na cara que me faz lembrar a lamela do Lacan, que quando o Zizec fala disso, fala a propósito do alien. Quando o alien cobre a cara. Eu vou um bocado por aí, mas de uma forma um pouco impressiva, sem querer fazer disso um programa.

Vera: Quanto a mim, estou a acabar agora "A Náusea" do Sartre que, de alguma maneira, também mostra um sujeito que se sente sempre separado do universo que o rodeia. "Os Cadernos do Subterrâneo" do Dostoievsky, também toca no sujeito que se tenta separar da sociedade de alguma maneira...

Francisco: Muito importante, "O Corpo e a Imagem" do Bragança de Miranda, que comecei a ler durante este processo.

Há claramente duas presenças distintas em palco. Esta pesquisa formal do corpo, para mim, também coloca a questão sobre que homem e que possibilidade do corpo hoje. Questionaram-se sobre isso?

Vera: No meu caso seria mais que corpo hoje. Este espectáculo anda muito, para mim, à volta desta questão. Que corpo, que presença? Mas aqui a questão do sujeito, de anulação do sujeito, mesmo quando o rosto está exposto, que é o meu caso na maior parte do tempo, há uma tentativa de anulação do sujeito. Seja pela ausência da expressão, no momento inicial em que estou muito exposta, a parte do som... Nesse início há ali quase uma identidade, uma presença... No caso do Francisco é mais evidente, essa tentativa de anular o sujeito. Mas mesmo eu estando visível, nomeadamente mostrando o rosto, penso que há sempre uma pesquisa nesse sentido.

Francisco: Mas não é no sentido de propor um ser humano para agora. É no sentido de identificares estas questões da falência das imagens e da saturação das imagens. Que modos de representar o corpo hoje, e que presença para um palco, do plano artístico?

A questão da presença é fundamental aqui. Que presença e que qualidade de presença vos interessa em palco? E isso tem correspondência com o 'fora de cena'?

Vera: Tendo sido essa pesquisa da questão da representação já sido feita, aqui quase que se torna necessário encontrar uma outra coisa. Já não é só o corpo que nos anos 60/70 começou a assumir-se com os seus defeitos e os seus erros. Acho que tem de ser diferente disso. E é por aí que o Francisco se oculta e eu assumo esta presença ausente. Acho que as pessoas já estão confortáveis com a imagem dos seus defeitos e com a apresentação do corpo na sua versão mais simples. Portanto, de algum modo, é preciso ainda... Expor essas qualidades não me parece suficiente. Então há quase como um reduzir ainda mais. Já não é a representação, a exuberância, essa coisa mais feia e grotesca, e orgânica. Tem de ser uma redução tal... que é quase deixar que as pessoas vejam e tentem ver além daquilo que é apresentado. A camada que se mostra não pode existir por si. De alguma maneira, para mim tem a ver com isto.

Francisco: Apesar de nos interessar a questão da presença, não a tratámos directamente. Tratámos por outras vias, como por exemplo da questão: como representar um corpo hoje, que corpo é que queremos propor em palco? Eu quero ocultar-me, mas estou presente, mas estou oculto, mas estou ausente como sujeito. Ninguém me pode ver, não há cabelos, não há a forma do meu corpo. Há uma forma quase abstracta, uma esfera, que depois vai desenhando outras formas, que vai aparecendo por momentos e cria movimento no cenário. O movimento de si próprio, do sujeito, não é importante.

Vera: Acho que aquilo que acaba por nos interessar é essa tensão entre o que muitas vezes é a ausência completa do Francisco em termos de imagem e a minha exposição, estando mesmo à boca de cena. A presença dos corpos neste espectáculo está nesse intervalo. O Francisco, mesmo estando coberto, no último momento é mais orgânico do que eu, que estou ali a forçar imenso o que seria natural para o que seria a minha descida rápida até ao chão.

Que presença destes corpos existe aqui? Esta questão pode ter uma leitura mais complexa, mesmo que a tensão esteja particularmente evidente na primeira parte. Nas outras situações é continuada a negação dessa presença. Na segunda parte, aqueles corpos não se assumem como humanos. São umas criaturas, os movimentos deles nunca são claros, se são mais orgânicos e naturais ou se são mais mecânicos. Na última parte continua essa ausência do rosto do Francisco, eu estou novamente mais exposta.

Francisco: A Meg [Stuart] foi ver um ensaio, e falámos no final, e ela dizia que na segunda parte, naqueles corpos azuis, vês muito mais a coreografia. Vês mais o movimento devido à anulação da personagem, da identidade. O que se faz é que ao tirares uma camada, dás a ver muito mais uma outra.

Vera: Isso remete-me para o que é a minha pesquisa: de que maneira consegues anular tudo o que é parasita, para mostrar, neste caso, o movimento. Há aquela forma sedutora que se revela, mas ao mesmo tempo... surge o movimento...

Francisco: Mas há uma coisa na presença que tem a ver com a percepção. Com a interrogação se certas estratégias de presença não minam a leitura do material que está a ser exposto. Se não promove um grau qualquer de dramaticidade. São tudo opções que eu já explorei muito. Mas desde o "Live/Evil..." que essa contenção me interessa.

Fiquei realmente com a impressão de que havia muita coreografia...

Francisco: A primeira parte está toda coreografada. A segunda está toda estruturada.

Vera: Na segunda, embora seja flutuante, embora os movimentos possam ter variações, mais à frente ou mais para trás, tem um estrutura...

Francisco: Até temos nomes para cada secção, para eles saberem as passagens que têm.

Isso também permite questionar o que significa essa opção, de querer trabalhar uma coreografia mais ou menos composta...

Francisco: O meu trabalho foi sempre muito estruturado. Mesmo tendo uma aparência de caos e improvisação. Muito por causa do tipo de trabalho que fazia. Eu optava pela introdução do erro sistematicamente nos trabalhos. Os próprios cenários e figurinos que atrapalhavam o movimento surgiam precisamente para reforçar a ideia de que estava a acontecer pela primeria vez. Era tudo uma estratéegia de improvisação. Tens de ter uma margem de adaptabilidade se tens líquidos no chão ou se estás a dançar sobre terra, etc . Mas é uma margem de adaptabilidade, não é estratégia de: “vamos criar a cena aqui, hoje e agora”. Aqui, mesmo na terceira cena, o meu percurso está fixo, há uma margem em que posso centrar mais ou menos na música, posso esticar mais a secção no chão ou não... Mas está coreografado nesse sentido, sei que vou ao chão numa direcção com o joelho... está tudo marcado.

Vera: No meu caso, tenho estado a fixar o percurso mas, de alguma maneira, não me interessa fixar os movimentos. O que sinto na última cena, é a vivência da ideia de que eu possa não estar preparada quando o movimento acontece. O movimento que faço podia ter entrado antes ou depois, não em relação à música, mas em relação a mim mesma. Há algo também na procura de um desconforto ou de um movimento errado. Isso acho que transforma o movimento, a presença, que é o que anima, de alguma maneira, esses movimentos.

Qual é a diferença entre o reclamar uma presença e uma dramaturgia que faz uma defesa do nada, de não construir, de não acção, de não produzir – como está escrito na sinopse - e ser o nada?

Vera: Temos o "Lecture on Nothing" to John Cage. É um discurso em que diz que vai falar de nada, que esteve a falar de nada... Há também todo um material que faz parte da concepção do espectáculo. Principalmente na primeira parte, naquilo que me toca fazer, parece pouco, mas há todo um processo atrás, toda uma camada densa de ideias, que de alguma maneira procuro concentrar ali. O resultado disso é que é minimo.

Francisco: Apesar do que está escrito na sinopse, a mim não me interessa o nada. Ainda agora com os meus alunos de teatro, depois de quatro meses com eles na Escola Superior de Teatro, apesar de ter chegado lá e ter dito: vamos partir do nada, não me interessa o nada. Estás sempre a juntar coisas e é impossível estares no nada. O que me interessa de facto são esses materiais que numa primeira visão, sobretudo superficial, podem suscitar a questão: “o que é aquilo?” São materiais que não se conseguem agarrar, não é por serem nada, é por serem difíceis de identificar e de agarrar. É mais isso. É criar esses materiais, estar nessa zona em que vais fazendo investimentos até apreender dali alguma coisa, mas que eles não te dão logo um sítio, uma pista imediata, por onde agarrar facilmente. Não é porque sejam nada.


Claudia Galhós